

Stablecoins: como 90% das criptos no Brasil driblam controle cambial
BC alerta para volatilidade nos fluxos de capital devido a remessas não reguladas
O uso crescente de stablecoins lastreadas em dólar para transferências internacionais está aumentando a volatilidade dos fluxos de capital no Brasil e contornando os controles cambiais tradicionais, alertou Renato Gomes, diretor de Organização do Sistema Financeiro e de Resolução do Banco Central. A declaração foi feita hoje durante conferência em Londres organizada pelo think tank OMFIF, especializado em política monetária.
Como funcionam as stablecoins e seu crescimento no Brasil
As stablecoins são criptomoedas cujo valor está atrelado a ativos tradicionais, como o dólar americano, oferecendo maior estabilidade em comparação com criptoativos voláteis como o Bitcoin. Nos últimos dois a três anos, o uso dessas moedas digitais pelos brasileiros cresceu significativamente, com o BC estimando que cerca de 90% do fluxo de criptomoedas no país está vinculado a stablecoins.
“Elas oferecem uma instância de desvio”, explicou Gomes durante sua apresentação. “Você pode obter as stablecoins e, quando chegar aos Estados Unidos ou a qualquer outro lugar, pode sacar a stablecoin e, essencialmente, usar uma conta em dólares sem toda a regulação usual.”
O processo é relativamente simples: um brasileiro compra stablecoins como USDT (Tether) ou USDC com reais em uma exchange local. Essas moedas digitais, que mantêm paridade com o dólar, podem ser transferidas instantaneamente para qualquer lugar do mundo através de blockchains como Ethereum, Tron ou Solana, com taxas significativamente menores que as cobradas pelo sistema bancário tradicional.
Ao chegar ao destino, o usuário pode converter as stablecoins em moeda local ou mesmo sacar dólares diretamente. “Um exemplo simples é que alguns caixas eletrônicos tradicionais em partes dos EUA agora permitem que dólares sejam sacados de algumas carteiras de stablecoins”, destacou o diretor do BC.
Preocupações do Banco Central com a evasão de controles
Para o Banco Central, uma das questões “preocupantes” é que as stablecoins permitem contornar os controles e balanços normais para a conversão de reais em dólares e sua transferência internacional. Essa rota alternativa está sendo “muito usada” para remessas, segundo Gomes.
No sistema tradicional, transferências internacionais passam por bancos autorizados a operar câmbio, que seguem regras rigorosas de compliance, incluindo identificação das partes, declaração da natureza da operação e, dependendo do valor, comprovação da origem e destino dos recursos. Além disso, todas as operações são reportadas ao BC.
Com as stablecoins, muitas dessas etapas são eliminadas ou simplificadas. Embora as exchanges de criptomoedas regulamentadas no Brasil exijam cadastro e sigam procedimentos de KYC (Conheça Seu Cliente), uma vez que os recursos são convertidos em stablecoins e transferidos para carteiras pessoais, o rastreamento torna-se mais difícil.
“Os fluxos de capital se tornam mais voláteis”, alertou Gomes, “essencialmente porque quase qualquer pessoa pode usar stablecoins para enviar dinheiro para dentro e para fora do país” sem passar pelos canais oficiais.
Impacto nos fluxos de capital e na economia
A facilidade de movimentação internacional de recursos via stablecoins pode amplificar movimentos especulativos e dificultar a gestão da política monetária. Em momentos de incerteza econômica ou política, por exemplo, a saída de capitais pode ser acelerada e intensificada por esse canal alternativo.
“Quando temos uma crise de confiança ou volatilidade no mercado, as stablecoins podem funcionar como uma válvula de escape que intensifica a pressão sobre o câmbio”, explica Ricardo Martins, economista especializado em mercados financeiros. “O BC perde parte da capacidade de monitorar e, eventualmente, intervir nesses fluxos.”
Além disso, operações via stablecoins podem facilitar a evasão fiscal, já que transferências internacionais realizadas por esse meio podem não ser devidamente declaradas às autoridades tributárias. A Receita Federal tem intensificado a fiscalização sobre operações com criptoativos, mas o desafio permanece significativo.
Para o sistema financeiro tradicional, o crescimento desse mercado paralelo representa uma perda de receitas com tarifas e spread cambial. Bancos e instituições de pagamento têm respondido com a redução de taxas e a criação de soluções digitais mais ágeis para transferências internacionais, como o Drex, projeto de moeda digital do Banco Central.
Desafios regulatórios e cooperação internacional
Um dos principais obstáculos para a regulação efetiva das stablecoins é a natureza transfronteiriça dessas operações. Gomes destacou que o maior emissor de stablecoins lastreadas em reais está sediado na Suíça, o que dificulta a supervisão pelo BC brasileiro.
“Não temos acesso a esses emissores”, afirmou o diretor. “Portanto, de certa forma, regular os emissores de stablecoins é algo que exigirá muita cooperação internacional.”
O Brasil avançou na regulação de criptoativos com a Lei 14.478/2022, que estabeleceu diretrizes para o funcionamento das exchanges e prestadores de serviços de ativos virtuais no país. No entanto, a legislação não aborda especificamente os desafios relacionados às stablecoins e seu uso para contornar controles cambiais.
Especialistas apontam que uma regulação eficaz precisará equilibrar a inovação tecnológica com a proteção do sistema financeiro. “É importante que o marco regulatório não sufoque a inovação, mas também não permita a criação de um sistema paralelo que comprometa a estabilidade financeira”, avalia Paulo Souza, professor de direito financeiro da USP.
Entre as possíveis abordagens regulatórias estão:
- Exigência de licenças específicas para emissores de stablecoins que operam no Brasil
- Obrigatoriedade de reportar transações acima de determinados valores
- Implementação de sistemas de monitoramento baseados em blockchain
- Acordos de cooperação internacional para supervisão conjunta
- Desenvolvimento de CBDCs (moedas digitais de bancos centrais) como o Drex
O Banco Central brasileiro tem participado ativamente de fóruns internacionais sobre o tema, como o Comitê de Pagamentos e Infraestruturas de Mercado (CPMI) do Banco de Compensações Internacionais (BIS), buscando alinhar sua abordagem às melhores práticas globais.
A expectativa é que nos próximos meses o BC apresente novas diretrizes específicas para stablecoins, possivelmente incluindo requisitos de reserva, transparência e governança para emissores que desejam operar com o real brasileiro.
Última atualização: 20 de maio de 2025, 10:00h
Compartilhe este conteúdo:
Publicar comentário