

Dívida agrária no RS atinge R$ 73 bilhões e afeta 150 mil famílias
Crise climática desde 2020 gera endividamento sem precedentes no campo gaúcho
A dívida agrária no Rio Grande do Sul alcançou a marca alarmante de R$ 73 bilhões, acumulada desde 2020 em função de sucessivas crises climáticas que devastaram a produção rural no estado. O endividamento crescente deixou mais de 150 mil famílias de agricultores sem acesso a crédito e com poucas alternativas para manter suas atividades produtivas, configurando uma das maiores crises do setor agrícola gaúcho em décadas.
Dimensão da crise no campo
Os R$ 73 bilhões de dívida representam aproximadamente 20% do PIB anual do Rio Grande do Sul, evidenciando a gravidade da situação. Este montante inclui financiamentos bancários não quitados, dívidas com fornecedores de insumos, empréstimos para investimentos em maquinário e infraestrutura, além de compromissos fiscais adiados.
“Estamos diante de uma situação sem precedentes. Nem mesmo as grandes secas históricas geraram um endividamento tão expressivo e disseminado”, afirma Carlos Renato Schmidt, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS).
O problema atinge diferentes perfis de produtores, desde a agricultura familiar até médios e grandes produtores. Contudo, as 150 mil famílias mais vulneráveis, que dependem exclusivamente da renda agrícola, enfrentam uma situação crítica de sobrevivência, sem acesso a novos créditos para o plantio da próxima safra.
Segundo levantamento da Emater-RS, cerca de 85% dos municípios gaúchos possuem produtores rurais em situação de inadimplência severa. As regiões mais afetadas são a Metade Sul, a Fronteira Oeste e partes do Vale do Taquari, áreas que sofreram intensamente com eventos climáticos extremos nos últimos cinco anos.
Histórico de eventos climáticos devastadores
A escalada da dívida agrária no Rio Grande do Sul começou em 2020, com uma seca severa que reduziu em 40% a produção de grãos naquele ano. Muitos agricultores precisaram recorrer a empréstimos emergenciais para cobrir os prejuízos e garantir o plantio da safra seguinte.
Em 2021, uma nova estiagem, ainda mais intensa, atingiu o estado, comprometendo novamente a produção. Dados da Secretaria da Agricultura indicam que as perdas naquele ano superaram R$ 15 bilhões apenas na produção de soja, milho e arroz.
O ano de 2023 trouxe chuvas excessivas no primeiro semestre, seguidas por uma seca prolongada no segundo. Já 2024 foi marcado pelas enchentes históricas que devastaram diversas regiões produtivas, destruindo não apenas a produção, mas também infraestruturas essenciais como silos, galpões e maquinário.
“Tivemos cinco anos seguidos de eventos climáticos extremos. Quando o produtor começava a se recuperar de uma crise, vinha outra ainda pior”, explica a engenheira agrônoma Marcia Velloso, da Embrapa Clima Temperado. “Este cenário de instabilidade climática constante tornou impossível para muitos agricultores manterem suas contas em dia.”
A intensificação das mudanças climáticas, com eventos cada vez mais frequentes e severos, transformou o que seriam crises pontuais em um problema estrutural para a agricultura gaúcha. Especialistas apontam que o padrão climático da região mudou significativamente, exigindo adaptações que muitos produtores não conseguiram implementar por falta de recursos.
Consequências para as famílias rurais
Para as 150 mil famílias mais afetadas, a situação ultrapassa a dimensão econômica e se torna uma crise humanitária. Sem acesso a novos créditos e com dívidas acumuladas, muitos agricultores estão abandonando o campo ou vivendo em condições precárias.
“Perdi tudo na enchente de 2024. A casa, o galpão, os animais e o trator que ainda estava pagando. Agora o banco quer que eu pague um financiamento de um bem que não existe mais”, relata João Silveira, 52 anos, produtor de leite em Encantado, no Vale do Taquari.
A inadimplência generalizada criou um círculo vicioso: sem conseguir quitar dívidas anteriores, os produtores não conseguem acessar novos créditos para investir na recuperação de suas propriedades ou no plantio de novas safras. Sem produção, não geram renda para pagar as dívidas, perpetuando e agravando o problema.
Dados da Secretaria de Desenvolvimento Rural indicam que aproximadamente 12 mil famílias já abandonaram definitivamente suas atividades agrícolas desde 2022. Outras 30 mil estão em situação de insegurança alimentar, dependendo de auxílios emergenciais e doações para sobreviver.
“Muitas famílias estão vendendo seus bens pessoais para comprar comida. Pessoas que produziam alimentos agora não têm o que comer”, destaca Maria Helena Oliveira, coordenadora da Caritas Diocesana de Santa Cruz do Sul.
Possíveis soluções e perspectivas
Diante da gravidade da situação, diferentes propostas têm sido discutidas para amenizar a crise. Entre as principais medidas em debate estão:
- Renegociação das dívidas: Extensão dos prazos de pagamento e redução de juros para dívidas contraídas entre 2020 e 2025, período marcado pelas crises climáticas.
- Fundo de emergência climática: Criação de um fundo específico para socorrer produtores rurais afetados por eventos climáticos extremos, com recursos federais e estaduais.
- Linhas de crédito especiais: Disponibilização de financiamentos com carência estendida e juros subsidiados para recuperação das propriedades e retomada da produção.
- Seguro rural ampliado: Reformulação do sistema de seguro agrícola para cobrir adequadamente os riscos climáticos crescentes.
O Ministério da Agricultura anunciou recentemente a formação de um grupo de trabalho para avaliar a situação e propor medidas emergenciais. “Reconhecemos a excepcionalidade da situação no Rio Grande do Sul e a necessidade de ações específicas para este contexto”, afirmou o ministro em comunicado oficial.
Para especialistas, contudo, além das medidas emergenciais, são necessárias ações estruturantes que ajudem os produtores a se adaptarem à nova realidade climática. “Precisamos investir em sistemas produtivos mais resilientes, diversificação de culturas e tecnologias de irrigação e drenagem”, defende Paulo Martins, pesquisador da UFRGS especializado em agricultura e mudanças climáticas.
Enquanto as soluções são debatidas, milhares de famílias gaúchas vivem a angústia da incerteza. “Não sei se vou conseguir plantar na próxima safra. Se não plantar, não colho. Se não colho, não tenho como pagar as dívidas. É um ciclo sem fim”, desabafa Antônio Machado, produtor de arroz em Uruguaiana.
A crise no campo gaúcho evidencia como as mudanças climáticas já afetam diretamente a vida de milhares de brasileiros, exigindo respostas rápidas e eficazes do poder público e da sociedade.
Última atualização: 17 de maio de 2025
Compartilhe este conteúdo:
Publicar comentário